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Declaração, por Yvonne Miller

por Yvonne Miller
Arte: Breakfast II. The Artist's Family, de Gustav Wentzel.

Yvonne Miller nasceu em 1985 na Alemanha, mas prefere o calor do Nordeste brasileiro, onde mora desde 2017. Cronista e contista, tem textos publicados em várias antologias e é uma das organizadoras e coautoras da coletânea de contos cearenses Quando a maré encher (Mirada, 2021). Pela Aboio, publicou Deus criou primeiro um tatu – Crônicas da Mata (Ed. Aboio, 2023).


Meu avô era um homem tranquilo e bem-humorado, com tendências a palhaçadas quando estava rodeado por seus quatro netos. Entre nós o chamávamos de vovô-palhaço. Já quando estava com outros adultos, mal falava. Lembro dele como um homem alto, magro, de cabelos brancos, olhos aguados e lábios finos que sempre formavam um sorriso ausente. 

Vovô-palhaço era casado com a vovó-dos-morangos. Ela compensava a silenciosa tranquilidade do marido com as incessantes lembranças da infância na guerra, da juventude como ajudante na livraria do pai (onde aos 13 anos conheceria meu avô, filho de um freguês), de como as primeiras aulas da recém fundada Universidade Livre de Berlim aconteciam em estábulos, das amigas cujos maridos – diferente do meu avô – não lhes davam permissão para trabalhar fora de casa, das suas aventuras como professora de inglês e francês. Quando ela não falava e meu avô não a escutava, com os olhos aguados e o sorriso ausente, quando reinava o silêncio na casa dos meus avós, era porque estavam lendo. Os dois sentados na sala quentinha, cada um na sua poltrona, óculos grossos no nariz e um livro aberto no colo. Tirando a cozinha e o banheiro, havia grandes estantes lotadas de livros em todos os cômodos e mais umas quantas no porão. Foi daí que surgiram meus primeiros amores literários.

Além de livros, todos os dias liam o Tagesspiegel da primeira até a última página. Minha avó se inquietava com a política, a educação, a sociedade; revoltava-se, queixava-se. Meu avô calava, escutava, balançava a cabeça, de vez em quando um “Pois…” — olhos aguados, sorriso ausente. Penso hoje que da minha avó herdei a revolta, do meu avô a escuta e dos dois o amor pelos livros.

Outro dia achei uma foto do casamento deles. Encontrei-a entre a papelada para a declaração de impostos. Era sobre essa declaração que eu ia escrever. Mas deixei-me levar pelas lembranças. Peço licença poética.


Arte: Breakfast II. The Artist’s Family, de Gustav Wentzel.

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